Nos estudos sobre o Holocausto, desde muito cedo surgiu a questão de saber de que maneira gerações subsequentes se relacionam com a experiência da geração diretamente atingida, à qual apenas têm acesso por narrativas públicas e privadas, nomeadamente, no âmbito familiar. A perceção de que este relacionamento implica um envolvimento emocional muito forte que torna a segunda e terceira gerações portadoras de uma “memória do não-vivido” levou a conceitos como o de “testemunha secundária” (Dominick LaCapra), de “testemunha por delegação” (James Edward Young) ou de “testemunha adotiva” (Geoffrey Hartman), entre outros. Seria, no entanto, o conceito de “pós-memória” - proposto pela investigadora norte-americana Marianne Hirsch, ela própria filha de sobreviventes do Holocausto, na sua obra Family Frames: Photography, Narrative, and Postmemory, publicada em 1997 - que, porventura pela direta associação ao lexema “memória”, iria tornar-se crescentemente hegemónico. Hoje em dia, este conceito está amplamente difundido e é aplicado nos mais diversos contextos, incluindo, no contexto português, para a abordagem de memórias pós-coloniais.
Na definição tornada praticamente clássica de Marianne Hirsch, “pós-memória aponta para a relação da segunda geração com experiências marcantes, muitas vezes traumáticas, que são anteriores ao seu nascimento, mas, não obstante, lhes foram transmitidas de modo tão profundo que parecem constituir memórias em si mesmas.” Em trabalhos posteriores da autora, a ideia de transmissão foi sendo matizada. Com efeito, não se trata de “transmissão” no exato sentido do termo, muito menos de uma transmissão linear. A noção de recordação, lembrança ou reminiscência no sentido da simples referência a uma experiência passada chegada ao sujeito por um processo de transmissão cede o lugar à ideia de investimento, negociação e (re)construção, que permite o estabelecimento de modos de comunicação suscetíveis de transpor o abismo irrevogável entre o ator real - vítima ou perpetrador - e aqueles que, não tendo participado e não podendo, assim, testemunhar no sentido literal da palavra, tomaram a decisão de mergulhar na experiência de outros, seja à escala familiar, seja à escala da sociedade no seu conjunto. Deste ponto de vista, o “pós” em “pós-memória” sinaliza, não tanto uma ideia de continuidade, mas sim um momento reflexivo, um intervalo, é uma marca tanto de proximidade como de distância, apontando para um processo por natureza dinâmico, enquanto produto de um trabalho de reencenação da relevância contemporânea do passado. Assim, a pós-memória representa, literalmente, um ato de tradução, se entendermos a tradução como um modelo epistemológico para o conjunto das estratégias de relacionamento e de incorporação de discursos e experiências que pertencem a um contexto por definição estranho e inassimilável.
Neste quadro, os processos de pós-memória revelam capacidade para ir além da esfera puramente familiar, o contexto por excelência de interrogação dos silêncios e dos traumas da geração precedente, e para se afirmarem na esfera pública. A constituição desta pós-memória pública tem um significado ético e político de enorme alcance, uma vez que traduz o compromisso de largos setores da sociedade com a construção de um presente e de um futuro conscientes das violências e do sofrimento provocado por ações do passado, traduzindo a capacidade de construir uma sociedade e uma democracia com memória, uma memória que não se esgote com o inevitável desaparecimento dos seus protagonistas diretos.
Referências
Hirsch, Marianne (1997), Family Frames: Photography, Narrative, and Postmemory. Cambridge, MA: Harvard University Press, 1997.
Hirsch, Marianne (2016), “A geração da pós-memória”, in Fernanda Mota Alves et al., Estudos de Memória. Teoria e Análise Cultural. Trad. F. Mota Alves et al. Famalicão: Húmus, 299-325.
Ribeiro, António Sousa (org.) (2021), A Cena da Pós-memória. O Presente do Passado na Europa Pós-colonial. Porto: Afrontamento, 2021.