Autora: Ruth Klüger
Título: Paisagens da Memória. Autobiografia de uma Sobrevivente do Holocausto
Local de publicação: São Paulo
Editora: Editora 34
Data de publicação: 2005
Tradução: Irene Aron
Número de páginas: 252
Edição original, em alemão: weiter leben. Eine Jugend. Göttingen: Wallstein Verlag, 1992.
Palavras-chave: a prisioneira criança; a prisioneira mulher; Judeus na Áustria; libertação dos campos; Alemanha no imediato pós-guerra; memória; memorialização; reconhecimento; Theresienstadt, Auschwitz-Birkenau
Índice
Primeira Parte. Viena
Segunda Parte. Os Campos
Theresienstadt
Auschwitz-Birkenau
Christianstadt (Gross-Rosen)
Terceira Parte. Alemanha
Quarta Parte. Nova York
Epílogo. Göttingen
Sinopse
Autobiografia de Ruth Klüger, judia, nascida em Viena, em 1931, várias vezes premiada. A importância da narrativa de Ruth Klüger e o seu valor pedagógico resultam de um posicionamento marginal e crítico em relação à maioria da narrativa de sobreviventes e a uma visão redutora que estas narrativas acabaram por construir relativamente à complexidade e à diversidade da vivência dos prisioneiros e das prisioneiras nos diferentes campos de concentração, o que acaba por constituir formas de exclusão de determinadas vítimas – nomeadamente as vítimas criança e vítimas mulheres – da história da dor moldada pela narrativa do sobrevivente homem adulto. Klüger pretende desfazer alguma esquematização que encontra nas narrativas de sobreviventes e, além disso, introduz reflexões críticas sobre os processos de memorialização, desafiando a habituação dos alemães à memória construída do Holocausto.
A primeira parte da autobiografia, que relata a infância enquanto menina judia em Viena, contraria já o modelo tipificado das narrativas de sobreviventes, introduzindo a ideia de que o/a prisioneiro/a é um ser humano, cuja vida não se inicia no momento da prisão e do transporte para os campos. Para além disso, esta parte da biografia permite entender as formas de opressão e de marginalização sentidas pelas crianças no quotidiano da Viena ocupada (a autobiografia tem início em 1939), bem como a forma como o desaparecimento gradual das pessoas e a necessidade de encontrar formas de sobrevivência e soluções para escapar se misturam com os dilemas identitários de crianças e adolescentes, em particular do sexo feminino, num mundo que se feminiza pela ausência dos homens. Klüger desenvolve, em particular, a sua relação problemática com a religião judaica e com o papel subalterno das mulheres na cultura correspondente, afirmando, desde o início, a sua incompreensão pelo facto de às mulheres ser interdito, inclusivamente, o celebrar religioso da memória dos parentes falecidos, através da oração – ou seja, da palavra. Isso impede-a de celebrar o ritual de luto pelo pai, morto numa câmara de gás. O crescimento da menina Ruth é acompanhado, também, pelo recurso à poesia e à musicalidade das palavras como uma âncora que lhe servirá nos campos como instrumento de estabilização emocional.
A segunda parte da autobiografia introduz, igualmente, complexidade nas memórias de sobreviventes, uma vez que se estrutura segundo os três campos percorridos por Klüger e a mãe, após a prisão e deportação. Desta forma se consegue uma perceção do que é a experiência da prisão enquanto meninas e mulheres – a qual é diferente da experiência masculina tornada “norma” -, bem como da diversidade dos campos, a qual, a partir das narrativas, é igualmente associada quase exclusivamente a Auschwitz. No campo de Theresienstadt, a experiência de Ruth é associada, sobretudo, à fome. Destaca, porém, também a amizade que se cria nos dormitórios para crianças, bem como a oportunidade para aprender com os intelectuais judeus presos no campo, os quais organizam uma espécie de escola que aparece como um instrumento de proteção. Em Auschwitz-Birkenau, onde chega com 12 anos, Ruth relata a sede e a forma como, graças à bondade de alguém, consegue mentir sobre a idade e escapar à seleção que a conduziria à morte, podendo permanecer no campo para mulheres, onde o quotidiano é visto da perspetiva das especificidades da experiência feminina, em particular das estratégias de proteção intergeracional, maternal, que se estabelecem. Os poemas que escreve mentalmente e decora são importantes no processo de sobrevivência. Finalmente, Ruth e a mãe são deportadas para o campo de Christianstadt (Gross-Rosen), um campo de trabalho, onde podem contactar com a população alemã, no papel de trabalhadoras forçadas. Parte da narrativa diz respeito ao espanto pelo facto de a população alemã parecer ser indiferente ao estatuto daqueles que escraviza. Igualmente, à medida que a menina se vai tornando adulta, reflete sobre o facto de nunca ter tido uma vida antes da prisão nos campos, o que torna difícil imaginar a libertação e uma vida após a detenção.
A Terceira Parte da autobiografia diz respeito à fuga dos campos, perante a chegada dos russos e às estratégias para sobreviver, com a mãe e uma irmã adotada, na Alemanha do imediato pós-guerra, sob ocupação americana. Ruth prossegue os estudos até à Universidade, ao mesmo tempo que assiste, por um lado, à renovação do antissemitismo e ao não reconhecimento do seu passado como prisioneira de campos de concentração. As suas memórias são confrontadas com a incredulidade de quem as ouve, uma vez que a ideia de prisioneiras crianças e mulheres parece inconcebível. Esta situação prolonga-se na Quarta Parte, em que é relatada a emigração para os EUA e os conflitos com a mãe. Tanto esta parte quanto o Epílogo são, sobretudo, dedicadas a reflexões críticas sobre os processos de memória e de memorialização e ao facto como a autobiografia da autora colide com a História do vencedor (os EUA) e dos vencidos. Por esta razão, a autora parece condenada a um apagamento total da sua existência de sofrimento. Um acidente de carro sofrido em Göttingen, no seu regresso à Alemanha, porém, motiva a escrita do livro.
Excerto
“A multidão de turistas que aflui hoje em dia a Munique vai primeiro a Marienplatz para ouvir o lindo carrilhão e admirar os divertidos bonecos de madeira que promovem pontualmente a sua dança na torre da Prefeitura, e depois se dirige a Dachau, para os galpões. Aqueles que desejam guardar a agradável recordação do bucólico pavilhão de Goethe e sua Christiane em Weimar, visitam também o monumento em Buchenwald com sentimento de irreverente consternação. Nesta cultura museológica dos campos de concentração, a consciência histórica obriga todo testemunho sensível da história contemporânea, sem deixar de mencionar o político imbuído de princípios éticos, a tirar fotografias em tais lugares ou, melhor ainda, a deixar-se fotografar.
De que nos serve isso? Recentemente conheci dois simpáticos estudantes alemães, jovens sérios, de princípios. Eram germanistas no primeiro semestre (…) Os jovens conversavam animadamente entre si, ouvi a palavra Auschwitz, mas não como é frequente na Alemanha e em outros lugares, como sinónimo de genocídio ou tópico político, e sim objetivamente, como a designação de um lugar que pareciam conhecer. Agucei os ouvidos, perguntei, mas por comodismo não revelei meu relacionamento pessoal com o campo. Contaram-me que tinham acabado de concluir seu serviço civil. Sua tarefa: pintar de branco as cercas de Auschwitz. Sim, é isso mesmo. Serviço civil como reparação do passado. Qual era o sentido disso? perguntei com ceticismo. (…)
O amável Augustin da lenda vienense acordou na fossa da peste e nada lhe aconteceu. Aos tropeços, pulou fora do buraco, deixou-o atrás de si e seguiu tocando sua gaita, símbolo do otimismo em relação à vida em tempos de morticínio. É diferente connosco, não nos deixam em paz, os fantasmas, quero dizer. Esperamos que se resolva o que não foi resolvido, para nós basta que nos agarremos tenazmente àquilo que restou – o lugar, as pedras, as cinzas. Não honramos os mortos com esses resquícios, nem belos nem vistosos, de crimes passados, os colecionamos e guardamos, porque nós de certa forma necessitamos deles: não devem primeiro evocar nosso desconforto para depois atenuá-lo? O nó jamais desfeito legado pela ferida e pelo tabu, representado pelas chacinas, pelo assassinato de crianças, transforma-se em um fantasma não redimido ao qual reservamos uma espécie de pátria onde ele possa encenar suas assombrações. Angustiante delimitação contra possíveis comparações, essa insistência quanto ao caráter único do crime. Que nunca mais ocorra. De qualquer maneira, a mesma coisa não ocorre duas vezes, de modo que cada acontecimento, assim como cada ser humano e até mesmo cada cão, é único. Seríamos mônadas encapsuladas se não houvesse a comparação e a diferenciação, pontes de uma coisa única para outra coisa única. No fundo, todos nós sabemos, tanto judeus quanto cristãos: parte daquilo que aconteceu nos campos de concentração repete-se em muitos outros lugares, hoje e ontem, e os campos foram, por sua vez, emulações (emulações, sem dúvida, de caráter único) de acontecimentos de anteontem.”
(pp. 65-66)
Outras obras de Ruth Klüger
Memórias e poesia
unterwegs verloren. Erinnerungen. Wien: Paul Zsolnay Verlag, 2008.
Zerreißproben. Kommentierte Gedichte. Wien: Paul Zsolnay Verlag 2013.
Gegenwind. Gedichte und Interpretationen. Wien: Paul Zsolnay Verlag, 2018.
Ensaio e estudos literários
The Early German Epigram: A Study in Baroque Poetry. Lexington, KY: University Press of Kentucky, 1971.
Frauen lesen anders. Essays. München: dtv, 1996.
Katastrophen. Über deutsche Literatur. München: dtv, 1997.
Gelesene Wirklichkeit. Fakten und Fiktionen in der Literatur. Göttingen: Wallstein, 2006.
Gemalte Fensterscheiben. Über Lyrik. Göttingen: Wallstein, 2007.
Was Frauen schreiben. Wien: Paul Zsolnay Verlag, 2010.
Marie von Ebner-Eschenbach. Anwältin der Unterdrückten. Wien: Mandelbaum, 2016.
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