Autor: Jonathan Littell
Título: As Benevolentes
Local de publicação: Lisboa
Editora: Dom Quixote
Ano de publicação: 2007
Tradução: Miguel Serras Pereira
Número de páginas: 893
Edição original, em francês: Les Bienveillantes. Paris: Gallimard, 2006.
Palavras-chave: ficção do perpetrador; crimes de guerra; banalidade do Mal
Índice
Toccata
Allemandes I e II
Courante
Sarabanda
Minuete (em Rondós)
Air
Giga
Sinopse
Romance escrito em francês pelo escritor norte-americano Jonathan Littell, galardoado com o Prémio Goncourt em 2006 e integrado nas chamadas “ficções do perpetrador”. Conta, na primeira pessoa, as memórias fictícias de Max Aue, um oficial das SS, desde a entrada dos alemães na URSS (Ucrânia, 1941) até à queda de Berlim. Oficial não combatente, especialista em informação e Doutor em Direito, Aue é participante ativo nos massacres e limpezas étnicas das campanhas do Leste na II Guerra Mundial e na organização da máquina de extermínio do Holocausto. Consegue escapar impune e fixar-se na França, após o conflito. O título refere-se às Euménides de Ésquilo e corresponde a um piscar de olhos irónico ao leitor, a quem o narrador se dirige, antes de contar, em detalhe e de forma fria e distanciada, os inúmeros crimes cometidos por si e pela máquina de guerra e de extermínio nazis. Sobressai o caráter excessivo da narração, baseado em profunda investigação histórica, em particular na descrição minuciosa e sucessiva de episódios de extrema violência, com o detalhe e a linguagem de relatórios oficiais e numa linguagem carregada de termos técnicos em alemão, como o registo de patentes militares. O leitor reconhece episódios e personagens históricos, incluindo o próprio Hitler. A analogia do aparelho nazi burocratizado com a máquina industrial está presente desde o início, através da associação com a indústria têxtil, à qual o protagonista acabou por dedicar-se, e ao tecer do destino, que constitui apenas uma das numerosas ligações intertextuais com mitos gregos. Tal como o uso da técnica, a observação do narrador tem como objetivo a racionalização da “solução final da questão judaica”, ou seja, a maximização da rentabilidade da máquina de destruição do Holocausto, cuja estrutura e funcionamento são pormenorizadamente descritos. O protagonista surge, intencionalmente, como personagem paradoxal, presa entre traumas de infância, que o levam ao assassínio da mãe, à repressão da sua homossexualidade, a pesadelos, mal-estar físico e manias de perseguição. É culto e amante de música, o que se reflete na estrutura musical escolhida para o romance. O caráter paradoxal do romance instala-se no foco sobre os perpetradores, que constitui uma nova direção na ficção sobre o Holocausto, a qual incidiu, inicialmente, sobre o testemunho de sobreviventes ou a ficção sobre as vítimas. O romance faz uso de inúmeros artifícios ficcionais, como a intertextualidade, a paródia, a ironia, aliados ao excesso da descrição crua e contínua da violência extrema, sublinhando, sem resolver, a interrogação sobre a “banalidade do Mal” (Arendt).
Excerto
"Adivinho o pensamento dos que me lêem: Aqui está um homem realmente mau, dirão de si para si, um tipo reles sob todos os aspectos, que devia estar a apodrecer na prisão em vez de nos despejar em cima a sua filosofia confusa de ex-fascista semi-arrependido. Quanto ao fascismo, não confundamos tudo, e quanto à questão da minha responsabilidade penal, não me julguem antecipadamente, uma vez que ainda não contei a minha história; quanto à questão da minha responsabilidade moral, sejam-me permitidas algumas considerações. Os filósofos políticos têm feito notar muitas vezes que em tempo de guerra o cidadão, do sexo masculino pelo menos, perde um dos seus direitos mais elementares, o de viver, e isso desde a Revolução Francesa e da invenção da conscrição, princípio hoje universalmente admitido ou quase. Mas raramente notaram que o mesmo cidadão perde ao mesmo tempo um outro direito, igualmente elementar e talvez ainda mais vital, no que diz respeito à ideia que faz de si próprio enquanto homem civilizado: o direito de não matar. Ninguém nos pergunta a nossa opinião. O homem que fica de pé à beira da vala comum, na maior parte dos casos, não quis estar ali mais do que aquele que está deitado, morto ou moribundo, no fundo da mesma vala. Objectar-me-ão que matar outro militar em combate não é a mesma coisa que matar um civil desarmado; as leis da guerra permitem uma coisa mas não a outra; a moral comum decide do mesmo modo. Bom argumento em abstrato, sem dúvida, mas que não entra minimamente em conta com as condições do conflito em questão. A distinção inteiramente arbitrária estabelecida depois da Guerra entre por um lado as «operações militares», equivalentes às de qualquer outro conflito, e por outro as «atrocidades», conduzidas por uma minoria de sádicos e de tarados, é, como espero vir a mostrar, uma fantasia consoladora dos vencedores – dos vencedores ocidentais, conviria deixá-lo claro (…) Não invoco a justificação da Befehlnotstand, a coerção das ordens tão cara aos nossos bons advogados alemães. O que fiz, fi-lo com pleno conhecimento de causa, pensando que se tratava do meu dever e que era necessário fazê-lo, por desagradável e infeliz que fosse. A guerra total é também isto: o civil é qualquer coisa que já não existe, e entre a criança judia gaseada ou fuzilada e a criança alemã morta pelas bombas incendiárias não há mais do que uma diferença de meios; as duas mortes eram igualmente vãs, nenhuma delas abreviou a guerra por um segundo que seja; mas nos dois casos, o homem ou os homens que mataram as crianças acreditavam que fazê-lo era justo e necessário; se se enganaram, quem deveremos acusar? O que digo continua a ser verdade ainda que se distinga artificialmente da guerra aquilo que o advogado judeu Lempkin baptizou de genocídio, quando consideramos que no nosso século pelo menos nunca houve ainda genocídio sem guerra, que genocídio não existe fora da guerra e que, como a guerra, se trata de um fenómeno colectivo: o genocídio moderno é um processo infligido às massas, pelas massas, para as massas. É também, no caso que nos preocupa, um processo segmentado pelas exigências dos métodos industriais. Do mesmo modo que, segundo Marx, o operário é alienado no que se refere ao produto do seu trabalho, no genocídio ou na guerra total sob a sua forma moderna o executante é alienado no que se refere ao produto da sua acção. O que vale até mesmo no caso em que um homem encosta o cano de uma espingarda à cabeça de outro homem e prime o gatilho. Porque a vítima foi para ali levada por outros homens, a sua morte foi decidida por outros ainda, e o atirador também sabe que não passa do último elo de uma cadeia muito comprida, e que não deve interrogar-se mais do que o membro de um pelotão que na vida civil executa um homem devidamente condenado pelas leis."
(p.24-25)
Outras obras de Jonathan Littell
• Edições em português
Uma História Antiga: Nova Versão. Lisboa, Dom Quixote, 2018 [ed. original, Une vieille histoire: nouvelle version (2018)].
• Ficção
Bad Voltage. New York: New American Library, 1989.
Études. Montpellier : Fata Morgana, 2007.
Récit sur rien. Montpellier : Fata Morgana, 2009.
En pièces. Montpellier : Fata Morgana, 2010.
Une vieille histoire. Montpellier ; Fata Morgana, 2012.
Une vieille histoire : nouvelle version. Paris : Gallimard, 2018.
• Ensaio
The Security Organs of the Russian Federation: A Brief History 1991–2004. Paris: PSAN Publishing House, 2006.
Le sec et l'humide. Éditions Gallimard, 2008.
Georgisches Reisetagebuch. Berlin: Berlin Verlag, 2008.
Tchétchénie, An III. Paris : Gallimard-Folio documents, 2009.
Triptyque : Trois études sur Francis Bacon. Paris : L'Arbalète-Gallimard, 2010.
Carnets de Homs. Paris : Gallimard, 2012
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