Autora: Heather Morris
Título: O Tatuador de Auschwitz
Local de publicação: Lisboa
Editora: Presença
Ano de publicação: 2018
Tradução: Miguel Romeira
Número de páginas: 229
Edição original, em inglês: The Tatooist of Auschwitz. London: Zaffire, 2018.
Palavras-chave: Auschwitz-Birkenau; tatuador; ficção do Holocausto; amor nos campos de concentração
Índice
[não tem]
Sinopse
Obra de ficção baseada em entrevistas realizadas pela autora com o sobrevivente do Holocausto Lale (Ludwig) Eisenberg. Apesar de ser um relato ficcional, conforme a nota da autora que abre o volume, “de um modo geral, o que é narrado ocorreu tal como é descrito e [que] todas as informações apresentadas como factos foram verificadas com recurso à documentação existente” (p.7). De facto, a narrativa pretende manter como base para a sua popularidade (tem 24 edições em Portugal) a ideia de ser “baseado numa inesquecível história real” (conforme a propaganda da capa). Foi pensada originalmente, aliás, como um guião cinematográfico e preserva marcas dessa escrita. Porém, e ainda mais pelo facto de ser recomendado no PNL, há muitas cautelas a ter com o valor de verdade da narrativa, que não decorre apenas dos “factos”, mas, desde logo, da memória subjetiva de quem os narrou à autora em entrevista e, muito mais, da forma como são plasmados na narrativa final. Esta apresenta muitos riscos, se for tomada como “real” por um/a leitor/a jovem ou de qualquer idade, uma vez que está bastante distante do retrato das vivências de Auschwitz dos testemunhos de sobreviventes, apresentando uma visão “romanceada” da experiência dos prisioneiros, onde a violência, apesar de sempre presente, acaba por ser apenas um pano de fundo pouco explorado e suplantado por uma história de amor e erotismo, muito inverosímil na forma em que é descrita, mas muito apelativa de um ponto de vista “hollywoodiano”, com o respetivo final feliz. Qualquer introdução a este livro tem, pois, de incluir as respetivas ressalvas quanto a isto, uma vez que Auschwitz é a antítese de um romance de amor. Mesmo que, de facto, histórias de amor possam ter acontecido, o seu desenrolar nunca terá sido tão aproblemático quanto a fluida narrativa de Heather Morris sobre as memórias de Lale dão a entender.
Lale é eslovaco e oferece-se voluntário para os campos de trabalho nazi para tentar salvar a família. Vai parar a Auschwitz-Birkenau, onde, depois de atravessar o percurso típico dos prisioneiros – transporte, seleção, duche, corte de cabelo, tatuagem, alojamento nos blocos, chamada – e experimentar sede, fome, a dureza dos trabalhos forçados e testemunhar mortes arbitrárias, acaba por se tornar tatuador, uma função que lhe permite algum privilégio dentro do campo, e uma posição em que pode fazer negócios e garantir a sobrevivência. Lale está consciente de que, ao ser tatuador, inflige sofrimento nas pessoas que marca e que é, de algum modo, cúmplice da tortura do sistema concentracionário, contudo, este dilema nunca é explorado e é tratado rapidamente como “se não o fizesse, alguém tinha de o fazer”. O mesmo acontece com todas as restantes personagens de prisioneiros que também executam tarefas que torturam os restantes prisioneiros, o que contraria, por exemplo, os profundos problemas de consciência que encontramos em reflexões de sobreviventes, como Primo Levi. O retrato das personagens, nesta obra de ficção, de resto, é absolutamente maniqueísta, apresentando os nazis como maus e os prisioneiros como sempre bons, sempre dispostos à entreajuda e à solidariedade, o que, mais uma vez, contraria a complexidade e as zonas de ambiguidade que as narrativas de testemunho nos dão a conhecer. Lale surge como um herói hollywoodiano, sempre “bom” e inquebrantável, que consegue constantemente soluções para salvar outros presos in extremis, apesar de apenas alguns momentos de desespero. É, além disso, um sedutor apaixonado. Apaixona-se, à primeira vista, por Gita, no momento em que tatua a jovem acabada de chegar. Consegue estabelecer negócios de trocas de bens recolhidos nos haveres dos presos com trabalhadores externos. Assim, consegue comida, que nunca guarda para si, que sempre distribui entre amigos ou a quem necessita, que usa como suborno para conseguir outros bens necessários, ou que dá à namorada, que consegue seduzir rapidamente com trocas de olhares, bilhetes e, depois, com presentes. A relação amorosa é descrita de um modo talhado para cinema, com momentos de erotismo, em que Lale coloca bocadinhos de chocolate na boca de Gita, ou de sexo apaixonado e desenfreado nas barracas, depois de subornada a kapo, e sempre com a conivência de um grupo de amigas. Protegida por Lale e colocada, também ela, nos serviços administrativos do campo, ou seja, numa posição privilegiada, Gita acaba por sobreviver até ao esvaziamento de Auschwitz na iminência da ocupação soviética e, depois, à própria violência dos russos. Também Lale sobrevive e se vê ao serviço do exército russo, como angariador de prostitutas entre jovens austríacas, esfomeadas, tarefa que, nesta narrativa, não é problematizada, nem suscita à personagem problemas de consciência de maior. Nada afeta, pois, o estatuto de herói do protagonista. No final, consegue reunir-se com a namorada após algumas peripécias. O volume contém um Epílogo, da autora, que narra a história posterior de Lale e Gita, um Posfácio sobre a relação da autora com Lale, um segundo Posfácio da autoria do filho do casal, Informação Adicional sobre o destino de algumas das restantes personagens, fotos do casal e dois mapas, um da Europa entre 1942-45, outro de Auschwitz-Birkenau, correspondendo à intenção de conferir à narração a autenticidade dos ditos factos, sem, porém, mostrar nenhum rigor.
Acima de tudo, é necessária uma atenção redobrada, como já se disse, ao perigo que é a “romantização” de Auschwitz e que esta narrativa, um êxito internacional de vendas, consolida. Muito embora possa dar algum retrato útil, com uma série de elementos da organização dos campos, desde a recolha de haveres aos processos administrativos, aos processos mais violentos, como os fuzilamentos, os gaseamentos, a cremação, as agressões gratuitas, a violência sexual continuada, a tendência da narrativa é o foco num herói de grande superficialidade e na sua história de amor, recuando tudo o resto para um pano de fundo extremamente problemático do ponto de vista ético. Assim, esta narrativa não traz nenhuma vantagem educativa em relação a uma boa narrativa de sobreviventes. Acresce que a autora tem vindo a ser confrontada com processos judiciais devido a alegadas manipulações de factos com fins comerciais.
Para além disso, a tradução portuguesa é bastante má, com muitos erros quer de tradução, em que a colagem incompreensível ao original leva a ferir a língua portuguesa e a preservar elementos absurdos (como a designação Mr e Mrs para personagens de nacionalidade eslovaca, por exemplo), quer de gramática e sintaxe. Também neste ponto, este livro se revela de parco valor educativo.
O excerto abaixo é apenas um exemplo dos muitos pontos problemáticos do livro, acima descritos.
Excerto
“Com a multidão a dispersar, Lale vê Gita. Corre para ela e para as amigas. Uma ou duas deixam escapar risadinhas ao vê-lo – um som tão despropositado neste campo da morte que Lale se delicia ao ouvi-lo. Gita abre um sorriso radiante. Tomando-lhe o braço, ele leva-a consigo para o sítio dos dois, atrás do edifício administrativo. O chão continua demasiado frio para se sentarem, por isso Gita encosta-se à parede e ergue o rosto para o sol.
- Fecha os olhos – pede Lale.
- Para quê?
- Faz o que eu pedi. Confia em mim. – Gita fecha os olhos.
- Abre a boca. – Ela abre os olhos. – Fecha os olhos e abre a boca.
Gita assim faz. Da sua pasta, Lale tira um bocadinho de chocolate. Leva-lho aos lábios, deixa que ela lhe sinta a textura e depois empurra-o delicadamente mais para dentro da boca dela. Ela toca-lhe com a língua. Lale fá-lo recuar de volta para os lábios. Agora que o chocolate está ligeiramente derretido, ele fá-lo deslizar suavemente pelos lábios dela e Gita lambe-o deleitada. Quando ele torna a pô-lo dentro da boca dela, ela dá-lhe uma trincadela, arrancando-lhe um pedacinho. E arregala os olhos. Deliciada com o sabor, diz:
- Porque será que o chocolate sabe sempre muito melhor quando no-lo dão à boca?
- Não sei. Nunca ninguém me fez isso.
Gita agarra no resto de chocolate que ele tem na mão.
- Fecha os olhos e abre a boca. – E repete-se a brincadeira de há instantes. Depois de lhe pintalgar os lábios com o último restinho de chocolate, Gita beija-o ao de leve e lambe o chocolate. Lale abre os olhos e vê que ela os tem fechados. Puxa-a para os seus braços e beijam-se com paixão.”
(p. 83-84)
Outras obras de Heather Morris
A Coragem de Cilka. Lisboa: Presença, 2020 [ed. em inglês, Cilka’s Journey, 2019].
Três Irmãs. Lisboa: Presença, 2021 [ed. em inglês, Three Sisters, 2021].
Histórias de Esperança - Como as vidas de pessoas normais podem ser verdadeiramente inspiradoras. Lisboa: Presença, 2022 [ed. em inglês, Stories of Hope, 2020].
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