Autor: Jurek Becker
Título: Jakob, o Mentiroso
Local de publicação: Lisboa
Editora: Guerra e Paz
Ano de publicação: 2022
Tradução: Maria José Segismundo dos Santos
Número de páginas: 280
Edição original, em alemão: Jakob der Lügner. Berlin; Weimar: Aufbau, 1969.
Palavras-chave: literatura do Holocausto, guetos, deportação, campos de concentração
Sinopse
Jakob, o Mentiroso é o primeiro livro e o mais aclamado de Jurek Becker, escritor polaco-alemão da República Democrática Alemã (R.D.A.). Publicado em 1969, é também um dos livros mais significativos sobre o Holocausto e o primeiro de uma trilogia do autor sobre o tema, seguindo-lhe Der Boxer [O Lutador de Boxe], em 1976, e, dez anos depois, Bronsteins Kinder [Os filhos de Bronstein]. Foi traduzido em várias línguas e galardoado com os prémios Heinrich Mann e Charles Veillon em 1971. Becker, que também foi argumentista, concebeu inicialmente a história para um filme televisivo. Porém, quando a DEFA, a empresa cinematográfica da R.D.A., o recusou, transformou-o num romance. Cinco anos depois, foi adaptado por Frank Beyer para a DEFA e, 28 anos mais tarde, por Peter Kassovitz para Hollywood.
Jurek Becker nasceu em Łódź, Polónia, no seio de uma família judaica; supõe-se que no ano de 1937, porém, desconhece-se a data de nascimento exata porque o pai o fez passar por mais velho para o salvar da deportação. Quando Hitler ocupou a Polónia, foi enviado para o gueto de Łódź. Daí foi mandado, juntamente com a mãe, para o campo de concentração de Ravensbrück, perto de Berlim, e, depois, para o de Sachsenhausen, também ele próximo da capital, onde seria libertado pelo Exército Vermelho em 1945. Só ele, o pai e uma tia escaparam, enquanto vinte membros da família, incluindo a sua mãe, sucumbiram ao Holocausto. Apesar de ser um sobrevivente, grande parte das informações contidas nos seus livros sobre a Shoah foram fruto do seu trabalho de pesquisa, dado que poucas recordações guardou desse tempo de criança e o seu pai, tal como muitos outros sobreviventes, também pouco ou nada contava sobre esse período traumatizante da sua vida. Em 1955, o escritor mudou-se para o Prenzlauer Berg, em Berlim-Leste, onde frequentou a escola secundária. Cumpriu o serviço militar na R.D.A, entrou no partido marxista-leninista SED e começou a estudar filosofia em 1957. Por divergências políticas, interrompeu os estudos em 1960. Em 1976, entra em conflito com a associação de escritores da R.D.A. por assinar uma carta contra o expatriamento do cantor e escritor Wolf Biermann. Abandonou a associação de escritores e, pouco depois, em 1977, é expulso da SED. Muda-se para Berlim Ocidental, onde passa a viver e trabalhar como escritor e argumentista.
A ação de Jakob, o Mentiroso decorre na Polónia durante a Segunda Guerra Mundial, sendo o protagonista principal Jakob Heym, um carácter simples, responsável e consciencioso. Tal como os restantes habitantes do gueto, trabalha na estação de mercadorias. Um dia é preso por um guarda por incumprimento do dever de recolher obrigatório às oito da noite e é chamado a um edifício para receber o respetivo castigo. Ao aí chegar, constata, porém, que tudo não passara de uma brincadeira, pois, na verdade, ainda não eram oito da noite. Durante os momentos de espera e terrível tensão antes de ser mandado embora, Jakob ouve na rádio que as tropas do Exército Vermelho estavam a aproximar-se. De volta ao gueto, repara que o seu colega Mischa, um pugilista amador, tenta roubar batatas para saciar a fome, crime punido com a morte nos guetos. Jakob tenta impedi-lo, mas Mischa ignora-o. Desesperado e para o demover do furto, decide contar-lhe da existência do rádio e que o Exército Vermelho se está a aproximar levando assim a que Mischa desista da ideia. Pouco depois, Mischa trai a confiança de Jakob espalhando a notícia que este possui um rádio, obrigando-o, assim, a continuar a tecer mentiras e a correr o risco de ser condenado. Jakob tenta acabar com a situação, mas logo percebe que os relatos imaginários e a esperança que eles despertam nos habitantes são essenciais para que eles continuem a viver e a suportar o dia-a-dia. Mantendo estas duas dimensões da realidade e ficção, o narrador omnisciente oferece ao leitor dois desfechos possíveis. Num, o narrador Jakob é morto quando tenta escapar do gueto, pouco antes da libertação pelo Exército Vermelho. No fim efetivo, o amigo Kowalsky suicida-se pouco depois de ouvir a confissão sobre o rádio. Todos são deportados do gueto para a morte no campo de concentração. A caminho do campo, Jakob conta a sua história ao narrador que, contrariamente a Jakob, sobreviveu ao Holocausto. Por sua vez, o narrador omnisciente conta a história ao leitor na primeira pessoa, interrompendo-a com reflexões próprias, opiniões e recordações.
Em Jakob, o Mentiroso, Jurek Becker ilustra que a sobrevivência dos judeus nos guetos constituía já em si um ato de heroísmo que só podia ser alimentado com a esperança. Para tal, criou um protagonista modesto, sem brilho, até algo desajeitado, sem dotes retóricos excecionais e que até tem de se esforçar para tecer as duas mentiras. Apresenta-o da perspetiva de um narrador omnisciente, distante, desprovida de pathos e sentimentalismo e recorrendo até ao humor. No entanto, o livro coloca questões essenciais: É Jakob um anti-herói porque mente? Ou é ele antes um herói porque o faz correndo o risco de morte só para dar alento e salvar os outros? Tanto mais que o nome do protagonista reporta intertextualmente para homónimo do livro Génesis. O Jacob bíblico também mentiu, neste caso ao seu pai, a conselho da mãe, Rebeca, a fim de receber a benção e o direito de primogenitura que, segundo a lei, estavam destinados ao impulsivo irmão Esaú, e assim se tornou um dos respeitados fundadores de Israel. Jakob, o Mentiroso não é, pois, apenas um livro sobre o Holocausto, mas também sobre filosofia, moral e a própria literatura e a arte. É um livro obre o papel central que a ficção e a arte têm para a sobrevivência humana e que Sebastião da Gama traduziu em poucos versos: “Pelo sonho é que vamos/ […] Basta a fé no que temos/ Basta a esperança naquilo/ Que talvez não teremos”.
O Holocausto tornou-se de tal forma no símbolo do mal absoluto, do inconcebível e indizível que despoletou uma crise existencial e artística na Europa do pós-guerra. Tal crise traduziu-se na pergunta: Como é que a literatura, a pintura e a poesia são possíveis depois dos horrores do Holocausto? Segundo o filósofo judaico Theodor W. Adorno “Depois de Auschwitz, escrever poesia é um ato bárbaro” [“Nach Ausschwitz ein Gedicht zu schreiben, ist barbarisch”]. Esta frase, que viria a ser publicada em Kulturkritik und Gesellschaft no ano de 1951, foi objeto de um vivo debate sobre o papel da arte no pós-guerra. Jurek Becker desafia o conteúdo desta frase ao sublinhar, com Jakob, o Mentiroso, que a esperança transmitida pela ficção literária é fulcral e pode sê-lo até mais do que o pão. Não é o único. Também Roberto Benigni respondeu a este desafio de forma semelhante ao produzir o filme A Vida é Bela em 1997. Nele, relata a história de um livreiro judeu na Itália fascista durante a Segunda Guerra Mundial que, quando é preso e enviado para um campo de concentração junto com o filho Giosuè, recorre à ilusão, à fantasia e ao humor para proteger a criança dos horrores que os envolvem.
Excerto
“[Kowalski foi visitar Jakob]
Queria apenas passar por lá para desejar boa-noite e para falar um pouco dos velhos tempos e dos tempos vindouros, com quem mais senão com o seu velho amigo, se ele não vem a tua casa, vais tu a casa dele.
– O que achas, Kowalski, quanto pode uma pessoa aguentar? – perguntou, finalmente, Jakob.
Ele quer então filosofar, deve estar Kowalski a pensar. Está à espera de uma explicação para a pergunta, para que esta seja encaminhada nesta ou naquela direcção, mas Jakob parece tê-la formulado num sentido bastante geral.
– Então? – diz Jakob. – O que achas?
– Se pões as coisas assim – diz Kowalski –, muito. Incrivelmente muito.
– Mas há um limite.
– Claro...
– Lamento, mas alcancei agora esse limite. Talvez outra pessoa pudesse ter aguentado mais tempo, mas eu não aguento mais.
– O que não aguentas mais?
– Não aguento mais – diz Jakob.
Kowalski dá-lhe tempo, não sabe que Jakob está a preparar a rendição incondicional, a pior de todas as admissões. Vê-lhe apenas o rosto ossudo, apoiado nas mãos, talvez um pouco mais pálido do que habitualmente, talvez um pouco mais cansado, mas continua a ser o rosto do mesmo Jakob que conhece como ninguém. Está preocupado, porque tais ataques de melancolia são absolutamente insólitos em Jakob; pode ser mal-humorado e conflituoso de vez em quando, nas há uma diferença. Não se lhe conhecem lamentos, os outros todos é que se lamentam, Jakob era algo assim como um consolador de imas. Consciente ou inconscientemente, Kowalski ia não raras vezes A casa dele para exorcizar as próprias fraquezas. Ainda antes do rádio, até mesmo antes do gueto. Ao fim de um dia particularmente mau, depois de ter estado de manha à noite atrás da montra, à espera em vão de clientes, ou quando chegava uma conta exorbitante e sem fazer a mínima ideia de que bolso a iria pagar, aonde ia nesse serão? Ao café de Jakob, mas não porque o Schnapps tivesse lá um sabor especialmente bom - era como em todos os lugares, e ainda por cima proibido, porque era vendido sem licença. Ia lá, porque o mundo parecia um pouco mais cor-de-rosa após essa visita, porque Jakob sabia dizer «cabeça erguida!» ou «vai ficar tudo bem!» ou algo parecido, com um pouco mais de convicção do que as outras pessoas. Talvez também porque, no seu pequeno círculo de amigos, Jakob era o único que se dava ao trabalho de dizer essas coisas. Kowalski dá-lhe tempo.
Agora, Jakob começa a falar novamente: a julgar pelas aparên-cias, para Kowalski, porque não está mais ninguém no quarto, a julgar pelas palavras, para uma audiência maior. O mesmo será dizer que está a pensar em voz alta, para o ar, com uma melancolia na voz baixa e com esta resignação nele nunca ouvida, a última de uma pródiga diversidade de informações para todos. Que não fiquem zangados com ele, se as fracas forças lho permitirem: a verdade é que não tem rádio nenhum, nunca teve. Também não sabe onde os russos estão, talvez venham amanha, talvez não venham nunca, estão em Pry ou em Tobolin ou em Kiev ou em Poltava ou ainda muito mais longe, talvez entretanto tenham sido até definitivamente derrotados, nem sequer isso sabe. A única coisa que pode dizer com certeza é que, há muito, muito têmpo, eles lutaram por Bezanika. Como pode ter tanta cer-Teza? Isso é uma história à parte, que hoje já não interessa a ninguém. Em todo o caso, é a verdade. [...]”
(pp. 238-239)
Outras obras de Jurek Becker
• Livros
Irreführung der Behörden [Burla às autoridades], Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1973.
Der Boxer [O lutador de boxe], Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1976.
Schlaflose Tage [Dias de insónia], Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1978.
Nach der ersten Zukunft [Após o primeiro futuro], Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1980.
Aller Welt Freund [Amigo de toda a gente], Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1982.
Bronsteins Kinder [Os filhos de Bronstein], Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1986.
Amanda herzlos [Amanda sem-coração], Frankfurt am Main: Suhrkamp, 1992.
• Guiões
1974: Jakob der Lügner [Jakob, o mentiroso]. Realizador: Frank Beyer.
1977: Das Versteck [O esconderijo]. Realizador: Frank Beyer.
1985–1997: Liebling Kreuzberg (série televisiva). Realizadores: Heinz Schirk, Werner Masten, Vera Loebner.
1991: Bronsteins Kinder [Os filhos de Bronstein]. Realizador: Jerzy Kawalerowicz.
1994: Wir sind auch nur ein Volk [Afinal, somos apenas um povo] (série televisiva). Realizador: Werner Masten.
1995: Wenn alle Deutschen schlafen [Quando todos os alemães estão a dormir] (produção televisiva). Realizador: Frank Beyer.