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O Rapaz do Pijama às Riscas

Autor: John Boyne
Título: O Rapaz do Pijama às Riscas
Local de publicação: Alfragide
Editora: Asa
Ano de publicação: 2007
Tradução: Cecília Faria e Olívia Santos
Número de páginas: 186
Edição original, em inglês: The Boy in the Striped Pyjamas. London: David Fickling Books, 2006.
Palavras-chave: Auschwitz, ficção do Holocausto; crianças nos campos de concentração, o lado alemão


Índice

1. Bruno faz uma descoberta
2. A casa nova
3. O Caso Perdido
4. O que eles viram da janela
5. Acesso interdito a todas as horas sem exceção
6. A criada que ganhava mais do que merecia
7. Como a mãe ficou com os louros por algo que não fez
8. O motivo por que a avó se zangou
9. Bruno recorda-se de como gostava de fazer explorações
10. O pontinho que se transformou numa pinta que se transformou numa mancha que se transformou num vulto que se transformou num rapaz
11. O Fúria
12. Shmuel pensa numa resposta para a pergunta de Bruno
13. A garrafa de vinho
14. Bruno conta uma mentira perfeitamente aceitável
15. Algo que ele não deveria ter feito
16. O corte de cabelo
17. A mãe consegue o que quer
18. Planeando a última aventura
19. O dia seguinte
20. O último capítulo


Sinopse

Obra de ficção que relata a amizade entre Bruno, o filho de um comandante das SS, que dirige o campo de concentração de Auschwitz, e Shmuel, um pequeno prisioneiro judeu, ambos de 9 anos. Esta obra é recomendada no Plano Nacional de Leitura e tem também uma adaptação ao cinema. Recebeu um número considerável de prémios literários.

A história é contada da perspetiva infantil de Bruno, um rapaz esperto, embora com uma perceção algo infantilizada para a idade que lhe é atribuída e uma ignorância do mundo à sua volta e da ideologia nazi, na qual deveria estar mergulhado, que aparecem como extremamente improváveis e meramente instrumentais para a ficção que se pretende construir. Inicia com a mudança da família – o pai, a mãe, a irmã Gretel, de 13 anos, e os criados – de Berlim para uma vivenda anexa ao campo de Auschwitz, designado na narrativa como “Acho-Vil”, de modo a corresponder aos defeitos de pronúncia da criança. O desgosto da mudança para uma casa isolada, sem corrimão para escorregar, sem outras crianças para brincar, dá o mote para uma história que, do início ao fim, através da focalização interna, faz o/a leitor/a empatizar com Bruno, o que, sendo o aspeto mais original da narrativa, também será o seu maior defeito. Através de Bruno conhecemos o pai, um homem ambicioso, autoritário, distante; a mãe, bastante crítica em relação ao marido e à sua carreira, compadecida com os prisioneiros dos campos que realizam serviços na sua casa; a irmã, uma típica adolescente mimada; a avó, uma artista que se distancia abertamente da adesão do filho ao nazismo. O pai é obediente ao “Fúria”, Hitler, o Führer, que também aparece num dos episódios, em que vai jantar a casa da família e ordena a transferência do pai de Bruno para a direção de Auschwitz. Bruno considera-o um homem “mal-educado”, ao contrário da simpática Eva Braun.

É importante frisar que nada, no livro, esclarece o contexto histórico, nunca se menciona nenhum nome ou conceito que permita ao/à leitor/a juvenil – público-alvo – que desconheça o Holocausto procurar informação a respeito. Apenas um/a leitor/a informado consegue entender as ligações entre esta narrativa e o contexto a que se refere – e ainda assim, de forma muito precária, já que o contexto aparece como pressuposto e jamais como objeto de descrição consistente. Ou seja, nem Auschwitz, nem nazismo, nem Hitler, nem SS, nem outras referências usadas nesta sinopse surgem no próprio texto, o que pressupõe que o leitor/a dispõe previamente deste conhecimento, o que é duvidoso – e até arriscado, se considerarmos a obra como possível recurso pedagógico.

Quase todo o livro se foca em Bruno e no seu quotidiano na sua casa anexa a “Acho-Vil” de onde vê um campo estranho, com pessoas com “pijamas às riscas” e rodeado por uma vedação. O olhar infantil de Bruno levanta muitas interrogações, que jamais são esclarecidas por um olhar informativo, pelo que o que sobra é a interpretação infantil que confere cores harmónicas à disforia observada. Desta forma, todo o contacto com a realidade do campo de concentração perde a oportunidade de se converter numa fonte de informação sobre a mesma – e torna-se, mais uma vez, perigosa a forma como se adoça esta realidade a partir da interpretação infantil do rapazinho alemão, em particular se o texto for usado de um ponto de vista pedagógico.

Bruno estabelece uma amizade com o rapazinho judeu, Shmuel, através de uma vedação. Porém, é extremamente reduzida a informação sobre os campos que perpassa as conversas de ambos. Bruno nota a magreza, a fraqueza, a sujidade do amigo, mas nunca toma consciência da fome (o que provavelmente uma criança de 9 anos seria capaz de fazer); Shmuel conta, de forma possivelmente ingénua demais, o processo que conduziu da segregação à prisão nos campos, mas de uma forma apenas sintética e levemente triste, que não dá um vislumbre sequer da tragédia nos campos. Esta estratégia, que é questionável eticamente, em particular numa obra juvenil, serve, porém, objetivos narrativos, já que o pouco que Shmuel menciona desaparece, de imediato, na visão “adocicada” do rapazinho alemão ingénuo, que se lhe sobrepõe. A segregação dos judeus com a braçadeira marcada com a estrela de David, por exemplo, é colocada em paralelo com o uso da braçadeira com uma suástica por parte do comandante das SS, e os comentários que encerram a conversa entre os rapazes não marcam as diferenças de poder, mas o entusiasmo da criança que gostaria de usar algo idêntico ao pai. Um jovem leitor não poderá perceber que dificilmente se trata de algo sequer comparável. As condições trágicas da vida no ghetto de Cracóvia (mais uma vez não há referências que permitam identificá-lo, a não ser para um leitor já informado) acabam por aparecer como menos significativas do que a deceção de viver numa vivenda de apenas três andares do jovem alemão. Nada é dito sobre as condições de vida nos campos, o trabalho forçado, o frio, as seleções, etc. O transporte dos prisioneiros em comboios é mencionado, mas aparece como um erro de quem escolheu a linha equivocada. Sublinhe-se, mais uma vez, que estas referências são mínimas, numa narrativa focada – sempre – no rapaz alemão, e não no menino judeu, o que poderia ser uma estratégia narrativa bem-sucedida no sentido de dar a ver a realidade do Holocausto, porém, fracassa por ser tão escassa, tão ligeira e tão reduzida a pequenos traços banalizados.

No final, o jovem alemão atravessa a vedação e junta-se ao amigo judeu no campo, “disfarçando-se” com um pijama às riscas. Ali é apanhado numa marcha e acaba por morrer gaseado, por engano. Também só um leitor previamente informado pode perceber esta informação. A narrativa conclui-se com a descoberta do pai SS daquilo que aconteceu ao filho e a sua loucura subsequente. Esta conclusão é reveladora de uma narrativa que acaba suscitando empatia pelo jovem alemão e, no final, até pelo seu pai nazi, o qual acaba castigado pelos seus crimes, mas de uma forma que dificilmente corresponde à dimensão do genocídio de que é culpado. De facto, o livro faz desaparecer a realidade dos campos, que é reduzida a pretexto para uma história de suposta amizade além das barreiras raciais – tema que sequer é mencionado na obra, onde a palavra judeus não terá mais do que três pequenas menções e o antissemitismo jamais é explicado. A despeito do sucesso que o livro conheceu, sobretudo a partir da adaptação cinematográfica (a qual, aliás, consegue ser mais bem conseguida do que o livro no retrato de algumas das realidades dos campos de concentração, mas repete o foco e a empatia no destino dos perpetradores), este livro é extremamente problemático para uma leitura que se pretenda educativa para a compreensão do Holocausto, pelos problemas acima aduzidos. Não se recomenda o seu uso, a não ser que acompanhado de fontes de informação histórica que permitam identificar aquilo que não é nomeado e contrariar a perspetiva “adocicada”, bem como o foco na redenção dos perpetradores. Salienta-se que, como revelam as próprias memórias de sobreviventes crianças, nem o uso de uma perspetiva infantil, nem a escolha de um público-alvo infantojuvenil obrigam a tal mitigação de um processo histórico que importa dar a conhecer, em especial nas suas motivações, as quais estão completamente ausentes do livro. Hitler não foi apenas um homem feio, de bigode absurdo, e mal-educado – e é possível fazer compreender isto a crianças jovens através de recursos adequados. De resto, como bem faz notar o Museu de Auschwitz, que inclui esta obra na lista de leituras não recomendadas, uma criança da idade de Bruno estaria já incluída nas organizações nacional-socialistas e envolvida no próprio sistema opressor, pelo que até neste aspeto se cria uma ideia de inocência que é extremamente problemática, quer no que diz respeito às crianças, quer às crianças no universo nazi, em particular.


Excerto

“Shmuel abanou a cabeça e continuou a sua história. Já não costumava pensar muito nestas coisas, porque quando se lembrava da vida antiga por cima da relojoaria ficava muito triste.
     – Usámos as braçadeiras durante alguns meses – disse ele. – E então as coisas voltaram a mudar. Um dia cheguei a casa e a minha mãe disse que não podíamos continuar a viver na nossa casa…
     – Eu também! – gritou Bruno, contente por não ter sido o único a ter de mudar de casa.
     – Sabes, o Fúria foi lá jantar e quando dei por mim já tínhamos mudado de casa. E eu odeio isto aqui – acrescentou, levantando a voz. – Ele também foi a tua casa?
     – Não, mas quando nos disseram que não podíamos continuar a viver na nossa casa, tivemos de nos mudar para outra parte de Cracóvia, onde os soldados tinham construído um muro enorme, e eu, a minha mãe, o meu pai e o meu irmão tínhamos todos de viver num só quarto.
     – Todos? – perguntou Bruno. – Só num quarto?
     – E não era só isso – disse Shmuel. Havia outra família a viver lá, a mãe e o pai estavam sempre a discutir e um dos filhos, que era maior do que eu, batia-me mesmo quando eu não fazia nada de mal.
     – Vocês não podem ter vivido todos num quarto – disse Bruno, abanando a cabeça. — Isso não faz sentido.
     – Todos – disse Shmuel acenando. — Onze ao todo.
     Bruno abriu a porta para o contradizer novamente. Na verdade, ele não acreditava que onze pessoas pudessem viver todas no mesmo quarto. Mas mudou de ideias.
     – Vivemos lá durante mais uns meses – continuou Shmuel -, todos apinhados naquele quarto. Havia uma janela pequena, mas eu não gostava de olhar lá para fora, porque se conseguia ver o muro e eu odiava-o, porque a nossa verdadeira casa era do outro lado. E esta parte da cidade era a parte má, ouvia-se sempre muito barulho e não se conseguia dormir. Eu odiava o Luka, o rapaz que estava sempre a bater-me, mesmo quando eu não fazia nada de mal. (…)
     – Até que um dia os soldados chegaram com camiões enormes – continuou Shmuel que parecia não estar muito interessado em Gretel – e disseram a toda a gente que saísse das casas. Muitos deles recusaram-se, escondendo-se onde podiam, mas no final acho que os apanharam a todos. Os camiões levaram-nos até um comboio, mas o comboio…
     Hesitou um momento e mordeu o lábio.
     –Bruno achou que ele ia começar a chorar, mas não conseguia perceber porquê.
     – O comboio era horrível – disse Shmuel. — Para começar, éramos muitos nas carruagens, não conseguíamos respirar e cheirava muito mal.
     – Isso foi porque vocês foram todos para o mesmo comboio – disse Bruno, lembrando-se dos dois comboios que tinha visto na estação quando partira de Berlim. – Quando viemos para cá, havia outro parado do outro lado da plataforma, mas parecia que ninguém o via. Foi esse que nós apanhámos. Vocês deviam ter apanhado esse.”
(pp. 113-114)


Outras obras de John Boyne

• Edições em português

     O Parente mais Próximo. Trad. Fátima Halbritter de Sousa. Lisboa: Ulisseia, 2011.
     A Coisa Terrível que Aconteceu a Barnaby Brocket. Trad. Irene Guimarães. Ilustr. Oliver Jeffers. Lisboa: Bertrand, 2013.
     O Rapaz no Cimo da Montanha. Trad. Helena Guimarães. Alfragide: Asa, 2016.
     Todos os Lugares Desfeitos. Trad. Célia Correia Loureiro. Porto: Porto Editora, 2022.

• Romances

     The Thief of Time. London: Weidenfeld & Nicolson, 2000.
     The Congress of Rough Riders. London: Weidenfeld & Nicolson, 2001.
     Crippen. London: Penguin, 2004.
     Next of Kin. London: Penguin, 2006.
     Mutiny on the Bounty. London: Doubleday, 2008.
     The House of Special Purpose. London: Doubleday, 2009.
     The Absolutist. London: Doubleday, 2011.
     The House is Haunted. London: Doubleday, 2013.
     A History of Loneliness. London: Doubleday, 2014.
     The Heart's Invisible Furies. London: Doubleday, 2017.
     A Ladder To The Sky. London: Doubleday, 2018.
     A Traveler at the Gates of Wisdom. London: Doubleday, 2020.
     The Echo Chamber. London: Doubleday, 2021.
     All the Broken Places. London: Doubleday, 2022.
     Water. London: Doubleday, 2023.

• Romances Juvenis

     The Boy in the Striped Pyjamas. London: David Fickling Books, 2006.
     Noah Barleywater Runs Away. London: David Fickling Books, 2010.
     The Terrible Thing That Happened To Barnaby Brocket. London: Doubleday Children's, 2012.
     Stay Where You Are and Then Leave. London: Doubleday Children's, 2013.
     The Boy at the Top of the Mountain. London: Doubleday Children's, 2015.
     My Brother's Name is Jessica. London: Puffin, 2019.


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